PORQUÊ “SEM LICENÇA PARA DIRIGIR” É MAIS SUBVERSIVO DO QUE “V DE VINGANÇA” - por Bernardo Krivochein
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PORQUÊ “SEM LICENÇA PARA DIRIGIR” É MAIS SUBVERSIVO DO QUE “V DE VINGANÇA” - por Bernardo Krivochein
Pergunta: se o atentado terrorista final de V tivesse falhado, os protestantes teriam também tirado suas máscaras de Guy Fawkes?
É o clímax de “V de Vingança”, no qual a morte de uma criança motiva a população a apoiar as ações do terrorista V (Hugo Weaving, mascarado), saindo às ruas e aguardando a derrubada do governo tirânico. A ação de V, envolvendo explosivos, um trem metroviário inteiro e uma starlet como Natalie Portman (com um grande público aguardando, a revolução não basta; precisa vir como espetáculo), respeita todas as normas de escala do cinema pop, mas também o falso-esquerdismo pop, “comunismo Coca-Cola” onde a situação conservadora é trocada pela oposição, supostamente justa, mas empossada e mantida por um golpe de estado.
Todos estão uniformizados, de corpo e de rosto, irreconhecíveis, e só revelam suas verdadeiras faces quando o sucesso da ação está confirmado e carimbado. É o medo anglo-americano do fracasso: mesmo com a insatisfação e revolta, os indivíduos não querem ser reconhecidos como aqueles que torceram pelo time que perdeu. A máscara protege. Em caso de derrota, todos retornam às vidas anteriores, sem represálias. A casaca das ideologias pode ser virada como convir.
O cartaz engana
Corte seco para 1988, em algum cinema assombrado por uma das últimas e melhores colaborações cinematográficas dos dois Coreys (os atores Corey Haim e Corey Feldman). Antes dos 30 minutos de “Sem Licença Para Dirigir”, Les Anderson (Haim) escapou por pouco do fracasso no teste prático de direção com um avaliador sádico. Nervoso durante o teste teórico e incapaz de acertar alguma das questões (é um subversivo – o filme trabalhará isso) ele espanca o computador, frustrado, ao esgotar o número de erros possíveis e ter sua sonhada habilitação negada. Terrorista nato, isso traz abaixo a rede de informática sem maiores esforços, levando todo o sistema de computadores a entrar em pane (“máquina” em “Sem Licença Para Dirigir” pode ser sinônimo de “sistema”, “regime”, “ordem”).
Nada foi planejado ou previsto. E não é uma vitória, mas a solução temporária e ilusória para os seus problemas. Assim mesmo, na incerteza, ele se assumirá orgulhosamente, escancarando um sorriso para a câmera enquanto tira sua foto para a carteira de habilitação. É o rosto feliz não daquele que subjugou o sistema vigente, mas de quem encontrou um desvio dele.
Não é o caso de desmerecer as excelências da produção em “V de Vingança”, e muito menos a fonte original na qual o filme se baseia, e atenua. O fato é que o autor da graphic novel, Alan Moore, entrevistado para o site Coming Soon, compartilhou as seguintes palavras ásperas:
“(O filme foi) transformado numa parábola da era Bush por pessoas tímidas demais para estabelecer uma sátira em seu próprio país... É uma fantasia liberal americana distorcida, frustrada e altamente impotente de um sujeito com ideais liberais americanos confrontando um estado governado por neoconservadores. Os quadrinhos de “V de Vingança” eram sobre fascismo, anarquia, eram sobre a Grã-Bretanha.”
Adaptações cinematográficas não precisam ser irredutivelmente fiéis à fonte original. Mas o filme “V de Vingança” descaracterizou o original para adaptá-lo aos incômodos particulares dos adaptadores - neutralizando muito do potencial de questionamento.
A foto do rosto de Les, na carteira de habilitação, rasgada na sua presença pela diretora do Departamento de Trânsito é um ato de violência maior do que aquele sofrido por V. Ambos têm a identidade negada, mas V parte para aniquilar todos os envolvidos com a perda – comportamento patológico de dirigentes totalitários. Já Les tenta realizar o sonho de se tornar motorista sem “existir” já que, para o universo rodoviário, ele não está ali. E, no entanto, lá está ele, contestando todas as leis de trânsito e patrocinando momentos de semi-caos.
A rejeição às normas e as atividades marginais são a maneira de Les reclamar a existência que lhe foi negada pelas autoridades – idéia básica também de “V de Vingança”. Mas a revolta de V é patuscada juvenil revoltada, esta idéia estranha de liberdade através do mero corte com os paradigmas sociais, negação do consumismo que ainda consume, desapego que acumula. O QG do anarquista V é um monumento em homenagem ao colecionismo mais elitista, preservando uma enorme quantidade de objetos de arte, livros, discos, filmes antigos e bonecos do Todd McFarlane.
V é um mecenas das artes banidas pelo governo orwelliano, mas não será surpresa se toda a coleção de álbuns do Kenny G estiver ao lado de um Renoir original: sua curadoria é apenas reflexo do consciente coletivo de “bom gosto” determinado pelas classes altas: “objetos raros, objetos caros, objetos únicos, mas que eu possuo.” Esquisito este conceito nerd que acredita no potencial revolucionário de sua caríssima coleção de memorabilias de “Battlestar Galactica”: a indignação fica nas palavras e, em ações, patrocina-se o supérfluo.
A arte não é supérflua, mas “V de Vingança” patrocina uma idéia muito atual de arte resumida a objeto, um fundo de investimento em que, no ato da compra, o dono supostamente absorve a relevância estética e histórica daquilo, ainda que seja uma besta sem interesse ou sensibilidade. É a idéia que relaciona quantidade de dinheiro com conteúdo, comum no mundo em que vivemos, apenas repreensível para uns poucos idealistas otários como nós.
O erro, diagnosticado por Moore, é que “V de Vingança” ingenuamente acredita se alinhar “conosco” na linha de combate, mas está apenas reafirmando o que nega. Não estaria o próprio filme virando a casaca? Não seria “V de Vingança”, com sua mensagem subversiva e superficial um agente infiltrado no “movimento de oposição” para desestabilizá-lo? Existe aqui o perigo de encará-lo não como peça de entretenimento, mas como um “bom soldado”, peça representativa de idéias anárquicas filmadas sob o nariz conservador da indústria de entretenimento hollywoodiana: vários críticos, fãs e espectadores na ocasião do lançamento pensaram assim. A personagem Evey, ao que parece, também.
Dois contra o sistema – e cada um numa direção
V, em “V de Vingança” e Les, em “Sem Licença para Dirigir” são organismos estranhos que ameaçam de falência do sistema do qual tentam participar, mas são rejeitados. Porém, os finais dos respectivos filmes separarão esses dois revolucionários por completo. Ao contrário do clímax de “V de Vingança”, em “Sem Licença Para Dirigir”, a revolução de Les não acabará numa catarse espetacular, com a satisfação imediata de uma transformação completa, um show de fogos depois do qual as pessoas podem voltar para casa. A revolução de “Sem Licença Para Dirigir” não é alimentada por desejos de transformação social, já que os objetivos totalmente pessoais de Les são o gancho do roteiro para que ele roube o carro e coloque a máquina da trama em movimento. É o contrário de “V de Vingança”, em que a questão pessoal é preciosamente reservada como reviravolta final.
Porém, apesar dos objetivos serem interesse quase exclusivo de Les, os acontecimentos finais criarão uma grande transformação no seu micro-universo de amigos e família. Se a definição de uma revolução é a mudança na infraestrutura que influencia mudança na superestrutura, dá para entender como o despretensioso “SLpD” é um filme com mais ideais revolucionários do que “V de Vingança”. A explosão final em “V” é um marco grande, de impacto, mas na superestrutura; a infra-estrutura permanece intacta e será muito mais bem vigiada pelo governo após esse grande evento (basta observar o que ocorreu no pós-11 de setembro).
Alguém pode argumentar que a explosão é a manifestação na superestrutura de uma mudança interna, mas o povo está apenas capturado, incauto, no meio da vingança pessoal de V. O povo que ele inflama em seus anúncios se provará de total irrelevância para a operação ou a direção de seus planos. O filme acaba quando V consegue o que quer – e o que ele quer é o que o povo também acredita desejar, pelo menos após os anúncios públicos espalhados pelo filme. O mesmo vale para Evey. Depois disso, John Hurt ainda é o totalitário?
Claro, como esquecer? Em clara referência à versão em cinema de “1984”, John Hurt retorna em “V de Vingança” como chefe de estado de um governo restritivo, similar àquele que oprimiu seu personagem no outro filme. Se o diretor de “V”, James McTeigue, quer dizer que os mártires de um regime são eles mesmos propensos ao totalitarismo, não há como sair da arapuca quando Hurt, agora o opressor, é finalmente deposto por outro mártir com idéias de transformação social, de contestação. Novamente, é a derradeira não-transformação de nada.
Retornemos à máquina, combatida por Les no teste de direção. “Sem Licença Para Dirigir” começa com uma questão de posse simples: uma habilitação para ganhar um carro BMW e impressionar a garota, não por acaso batizada de Mercedes (Heather Graham), um nome que desantropomorfizou-se, perdeu sua humanidade, com a revolução da indústria automobilística, algo com que o roteiro brincará. Les deseja o que todos querem; ele perde seu direito a isso e tenta reclamá-lo à força. E perceberá finalmente que a posse material (do carro e da garota, mantida na mala do veículo feito um estepe) é apenas um meio – entre muitos – para o fim que ele atingirá por um caminho alternativo, mantido oculto pelas autoridades e pela mídia.
Quando seu pai ironicamente lhe confere as chaves de um BMW, o que marcaria sua aprovação de volta à sociedade, Les rejeita, dizendo já ter conseguido uma Mercedes. Les não se refere mais à marca. Afinal, ele nunca se referiu a uma Mercedes que não fosse a garota, ao contrário dos outros ao redor. (Esse é também o momento que inverte a favor dos meninos o momento mais prezado pelas espectadoras de “Gatinhas e Gatões”: aquele em que Jake Ryan, o namorado ideal, surge na porta da casa de Samantha Baker com seu Porsche 944)
A metade humana
Existe uma faceta ainda mais inesperada em “Sem Licença Para Dirigir”: o humanismo. Ao contrário de “V de Vingança”, em “SLpD” não há um dirigente ou capanga sequer assassinado; a revolução de Les preserva todos os humanos e destrói apenas a máquina - carro, o sistema, os departamentos de controle. O filme de 1988 é humano o bastante para contestar as autoridades sem reduzi-las a Autoridades (justificando suas mortes como mera faxina no sistema). O que está destruído no final de “SLpD” é a Máquina: os títulos e as regras.
Cena: tensos por terem destruído o carro do avô (que ficou com eles por troca temporária de veículos), pai e filho aguardam ansiosamente pelo retorno dele. A temida reação desta figura maior que rege pai e filho – e pode punir os dois – vira alívio cômico: a autoridade máxima entrega o carro da família igualmente destruído. Ele é tão inepto e irresponsável quanto Les, visto como perigoso e incapaz. A Máquina é capaz de fazer ela mesma as arbitrariedades que usa como motivo para perseguir aqueles lhe considera marginais. Então, como confiar na Máquina, como seguir leis e viver em sociedade? Les não escolhe abandonar aquilo que é tomado como signo de sucesso, mas descobre o que realmente deseja, independente do que seja ditado pelo governo, ou pelo mercado. Les não descobre que quer a garota; ele descobre porque a quer.
Toda beleza e engajamento de “SLpD” eclodem numa seqüência em torno de questionamentos essenciais para o consumismo, chegando a identificar, palavra por palavra a idéia de “V de Vingança” sobre aquilo que define e engrandece o indivíduo – para depois rebater esse argumento violentamente. A cena: o pai de Les, enfurecido com a destruição do carro, vocifera resumindo todas as autoridades do filme:
“Você faz alguma idéia do que fez, Les? Do que isto significa para o seu futuro nesta casa e neste planeta? Nem queira imaginar. Tudo aquilo que era diversão e lazer acabou de desaparecer. Você tinha liberdade, a confiança de seus pais e uma vida social – isso terminou. Você tinha uma TV, um aparelho de som, um taco de baseball, uma raquete, um patinete – tudo isto acabou. Até a luz do sol e a janela em seu quarto.”
O discurso, associando liberdade com materialismo, parece provocar o trabalho de parto da mãe de Les, as contrações mais intensas à medida que o pai lista as proibições. Angústia. O bebê já nasce para uma série pré-determinada de deveres e responsabilidades, como se nascido diretamente para uma prisão. A cena é alegoria de todos os encargos e prostrações impostas já no berço nesta sociedade: o bebê nasce diretamente numa prisão e está sendo recepcionado pela leitura das leis logo à entrada.
Mas “Sem Licença Para Dirigir” não se renderá ao determinismo barato de filmes auto-importantes, explicitamente engajados. Sua visão é de que a Máquina é útil, desejável, deve ser abusada para fins que auxiliem a sociedade, mas não deve ser cobiçada. No momento em que ganha vida própria, é preciso saber que se pode destruí-la. Se “V de Vingança” associa o humano à Máquina e acredita que só é possível subjugar o sistema aniquilando as autoridades, “SLpD” acredita na deposição da Máquina sem que isso custe uma vida sequer.
A cena acima continua: apesar de tudo, a Máquina é o meio, quase destruído, para salvar a vida do irmãozinho que nasce, levando a família inteira para o hospital. A única marcha que ainda funciona é a ré. E o único que pode dirigir o carro nessas condições, e salvar uma vida, é o contestador perseguido e condenado ao longo de todo o filme. A hilária seqüência em que Les dirige de marcha ré pelas ruas é de uma subversividade inimaginável por McTeigue, Joel Silver e os irmãos Wachowski de “V”. Antes da destruição completa, Les usa a máquina (carro) contra a Máquina (leis de trânsito) a favor da Máquina (salvar uma vida). Porque, para que se possa viver, às vezes é preciso ir na direção contrária à das massas, ainda que a subversão nos torne identificáveis.
fonte: http://www.pilulapop.com.br/overdose_secoes.php?id=624
É o clímax de “V de Vingança”, no qual a morte de uma criança motiva a população a apoiar as ações do terrorista V (Hugo Weaving, mascarado), saindo às ruas e aguardando a derrubada do governo tirânico. A ação de V, envolvendo explosivos, um trem metroviário inteiro e uma starlet como Natalie Portman (com um grande público aguardando, a revolução não basta; precisa vir como espetáculo), respeita todas as normas de escala do cinema pop, mas também o falso-esquerdismo pop, “comunismo Coca-Cola” onde a situação conservadora é trocada pela oposição, supostamente justa, mas empossada e mantida por um golpe de estado.
Todos estão uniformizados, de corpo e de rosto, irreconhecíveis, e só revelam suas verdadeiras faces quando o sucesso da ação está confirmado e carimbado. É o medo anglo-americano do fracasso: mesmo com a insatisfação e revolta, os indivíduos não querem ser reconhecidos como aqueles que torceram pelo time que perdeu. A máscara protege. Em caso de derrota, todos retornam às vidas anteriores, sem represálias. A casaca das ideologias pode ser virada como convir.
O cartaz engana
Corte seco para 1988, em algum cinema assombrado por uma das últimas e melhores colaborações cinematográficas dos dois Coreys (os atores Corey Haim e Corey Feldman). Antes dos 30 minutos de “Sem Licença Para Dirigir”, Les Anderson (Haim) escapou por pouco do fracasso no teste prático de direção com um avaliador sádico. Nervoso durante o teste teórico e incapaz de acertar alguma das questões (é um subversivo – o filme trabalhará isso) ele espanca o computador, frustrado, ao esgotar o número de erros possíveis e ter sua sonhada habilitação negada. Terrorista nato, isso traz abaixo a rede de informática sem maiores esforços, levando todo o sistema de computadores a entrar em pane (“máquina” em “Sem Licença Para Dirigir” pode ser sinônimo de “sistema”, “regime”, “ordem”).
Nada foi planejado ou previsto. E não é uma vitória, mas a solução temporária e ilusória para os seus problemas. Assim mesmo, na incerteza, ele se assumirá orgulhosamente, escancarando um sorriso para a câmera enquanto tira sua foto para a carteira de habilitação. É o rosto feliz não daquele que subjugou o sistema vigente, mas de quem encontrou um desvio dele.
Não é o caso de desmerecer as excelências da produção em “V de Vingança”, e muito menos a fonte original na qual o filme se baseia, e atenua. O fato é que o autor da graphic novel, Alan Moore, entrevistado para o site Coming Soon, compartilhou as seguintes palavras ásperas:
“(O filme foi) transformado numa parábola da era Bush por pessoas tímidas demais para estabelecer uma sátira em seu próprio país... É uma fantasia liberal americana distorcida, frustrada e altamente impotente de um sujeito com ideais liberais americanos confrontando um estado governado por neoconservadores. Os quadrinhos de “V de Vingança” eram sobre fascismo, anarquia, eram sobre a Grã-Bretanha.”
Adaptações cinematográficas não precisam ser irredutivelmente fiéis à fonte original. Mas o filme “V de Vingança” descaracterizou o original para adaptá-lo aos incômodos particulares dos adaptadores - neutralizando muito do potencial de questionamento.
A foto do rosto de Les, na carteira de habilitação, rasgada na sua presença pela diretora do Departamento de Trânsito é um ato de violência maior do que aquele sofrido por V. Ambos têm a identidade negada, mas V parte para aniquilar todos os envolvidos com a perda – comportamento patológico de dirigentes totalitários. Já Les tenta realizar o sonho de se tornar motorista sem “existir” já que, para o universo rodoviário, ele não está ali. E, no entanto, lá está ele, contestando todas as leis de trânsito e patrocinando momentos de semi-caos.
A rejeição às normas e as atividades marginais são a maneira de Les reclamar a existência que lhe foi negada pelas autoridades – idéia básica também de “V de Vingança”. Mas a revolta de V é patuscada juvenil revoltada, esta idéia estranha de liberdade através do mero corte com os paradigmas sociais, negação do consumismo que ainda consume, desapego que acumula. O QG do anarquista V é um monumento em homenagem ao colecionismo mais elitista, preservando uma enorme quantidade de objetos de arte, livros, discos, filmes antigos e bonecos do Todd McFarlane.
V é um mecenas das artes banidas pelo governo orwelliano, mas não será surpresa se toda a coleção de álbuns do Kenny G estiver ao lado de um Renoir original: sua curadoria é apenas reflexo do consciente coletivo de “bom gosto” determinado pelas classes altas: “objetos raros, objetos caros, objetos únicos, mas que eu possuo.” Esquisito este conceito nerd que acredita no potencial revolucionário de sua caríssima coleção de memorabilias de “Battlestar Galactica”: a indignação fica nas palavras e, em ações, patrocina-se o supérfluo.
A arte não é supérflua, mas “V de Vingança” patrocina uma idéia muito atual de arte resumida a objeto, um fundo de investimento em que, no ato da compra, o dono supostamente absorve a relevância estética e histórica daquilo, ainda que seja uma besta sem interesse ou sensibilidade. É a idéia que relaciona quantidade de dinheiro com conteúdo, comum no mundo em que vivemos, apenas repreensível para uns poucos idealistas otários como nós.
O erro, diagnosticado por Moore, é que “V de Vingança” ingenuamente acredita se alinhar “conosco” na linha de combate, mas está apenas reafirmando o que nega. Não estaria o próprio filme virando a casaca? Não seria “V de Vingança”, com sua mensagem subversiva e superficial um agente infiltrado no “movimento de oposição” para desestabilizá-lo? Existe aqui o perigo de encará-lo não como peça de entretenimento, mas como um “bom soldado”, peça representativa de idéias anárquicas filmadas sob o nariz conservador da indústria de entretenimento hollywoodiana: vários críticos, fãs e espectadores na ocasião do lançamento pensaram assim. A personagem Evey, ao que parece, também.
Dois contra o sistema – e cada um numa direção
V, em “V de Vingança” e Les, em “Sem Licença para Dirigir” são organismos estranhos que ameaçam de falência do sistema do qual tentam participar, mas são rejeitados. Porém, os finais dos respectivos filmes separarão esses dois revolucionários por completo. Ao contrário do clímax de “V de Vingança”, em “Sem Licença Para Dirigir”, a revolução de Les não acabará numa catarse espetacular, com a satisfação imediata de uma transformação completa, um show de fogos depois do qual as pessoas podem voltar para casa. A revolução de “Sem Licença Para Dirigir” não é alimentada por desejos de transformação social, já que os objetivos totalmente pessoais de Les são o gancho do roteiro para que ele roube o carro e coloque a máquina da trama em movimento. É o contrário de “V de Vingança”, em que a questão pessoal é preciosamente reservada como reviravolta final.
Porém, apesar dos objetivos serem interesse quase exclusivo de Les, os acontecimentos finais criarão uma grande transformação no seu micro-universo de amigos e família. Se a definição de uma revolução é a mudança na infraestrutura que influencia mudança na superestrutura, dá para entender como o despretensioso “SLpD” é um filme com mais ideais revolucionários do que “V de Vingança”. A explosão final em “V” é um marco grande, de impacto, mas na superestrutura; a infra-estrutura permanece intacta e será muito mais bem vigiada pelo governo após esse grande evento (basta observar o que ocorreu no pós-11 de setembro).
Alguém pode argumentar que a explosão é a manifestação na superestrutura de uma mudança interna, mas o povo está apenas capturado, incauto, no meio da vingança pessoal de V. O povo que ele inflama em seus anúncios se provará de total irrelevância para a operação ou a direção de seus planos. O filme acaba quando V consegue o que quer – e o que ele quer é o que o povo também acredita desejar, pelo menos após os anúncios públicos espalhados pelo filme. O mesmo vale para Evey. Depois disso, John Hurt ainda é o totalitário?
Claro, como esquecer? Em clara referência à versão em cinema de “1984”, John Hurt retorna em “V de Vingança” como chefe de estado de um governo restritivo, similar àquele que oprimiu seu personagem no outro filme. Se o diretor de “V”, James McTeigue, quer dizer que os mártires de um regime são eles mesmos propensos ao totalitarismo, não há como sair da arapuca quando Hurt, agora o opressor, é finalmente deposto por outro mártir com idéias de transformação social, de contestação. Novamente, é a derradeira não-transformação de nada.
Retornemos à máquina, combatida por Les no teste de direção. “Sem Licença Para Dirigir” começa com uma questão de posse simples: uma habilitação para ganhar um carro BMW e impressionar a garota, não por acaso batizada de Mercedes (Heather Graham), um nome que desantropomorfizou-se, perdeu sua humanidade, com a revolução da indústria automobilística, algo com que o roteiro brincará. Les deseja o que todos querem; ele perde seu direito a isso e tenta reclamá-lo à força. E perceberá finalmente que a posse material (do carro e da garota, mantida na mala do veículo feito um estepe) é apenas um meio – entre muitos – para o fim que ele atingirá por um caminho alternativo, mantido oculto pelas autoridades e pela mídia.
Quando seu pai ironicamente lhe confere as chaves de um BMW, o que marcaria sua aprovação de volta à sociedade, Les rejeita, dizendo já ter conseguido uma Mercedes. Les não se refere mais à marca. Afinal, ele nunca se referiu a uma Mercedes que não fosse a garota, ao contrário dos outros ao redor. (Esse é também o momento que inverte a favor dos meninos o momento mais prezado pelas espectadoras de “Gatinhas e Gatões”: aquele em que Jake Ryan, o namorado ideal, surge na porta da casa de Samantha Baker com seu Porsche 944)
A metade humana
Existe uma faceta ainda mais inesperada em “Sem Licença Para Dirigir”: o humanismo. Ao contrário de “V de Vingança”, em “SLpD” não há um dirigente ou capanga sequer assassinado; a revolução de Les preserva todos os humanos e destrói apenas a máquina - carro, o sistema, os departamentos de controle. O filme de 1988 é humano o bastante para contestar as autoridades sem reduzi-las a Autoridades (justificando suas mortes como mera faxina no sistema). O que está destruído no final de “SLpD” é a Máquina: os títulos e as regras.
Cena: tensos por terem destruído o carro do avô (que ficou com eles por troca temporária de veículos), pai e filho aguardam ansiosamente pelo retorno dele. A temida reação desta figura maior que rege pai e filho – e pode punir os dois – vira alívio cômico: a autoridade máxima entrega o carro da família igualmente destruído. Ele é tão inepto e irresponsável quanto Les, visto como perigoso e incapaz. A Máquina é capaz de fazer ela mesma as arbitrariedades que usa como motivo para perseguir aqueles lhe considera marginais. Então, como confiar na Máquina, como seguir leis e viver em sociedade? Les não escolhe abandonar aquilo que é tomado como signo de sucesso, mas descobre o que realmente deseja, independente do que seja ditado pelo governo, ou pelo mercado. Les não descobre que quer a garota; ele descobre porque a quer.
Toda beleza e engajamento de “SLpD” eclodem numa seqüência em torno de questionamentos essenciais para o consumismo, chegando a identificar, palavra por palavra a idéia de “V de Vingança” sobre aquilo que define e engrandece o indivíduo – para depois rebater esse argumento violentamente. A cena: o pai de Les, enfurecido com a destruição do carro, vocifera resumindo todas as autoridades do filme:
“Você faz alguma idéia do que fez, Les? Do que isto significa para o seu futuro nesta casa e neste planeta? Nem queira imaginar. Tudo aquilo que era diversão e lazer acabou de desaparecer. Você tinha liberdade, a confiança de seus pais e uma vida social – isso terminou. Você tinha uma TV, um aparelho de som, um taco de baseball, uma raquete, um patinete – tudo isto acabou. Até a luz do sol e a janela em seu quarto.”
O discurso, associando liberdade com materialismo, parece provocar o trabalho de parto da mãe de Les, as contrações mais intensas à medida que o pai lista as proibições. Angústia. O bebê já nasce para uma série pré-determinada de deveres e responsabilidades, como se nascido diretamente para uma prisão. A cena é alegoria de todos os encargos e prostrações impostas já no berço nesta sociedade: o bebê nasce diretamente numa prisão e está sendo recepcionado pela leitura das leis logo à entrada.
Mas “Sem Licença Para Dirigir” não se renderá ao determinismo barato de filmes auto-importantes, explicitamente engajados. Sua visão é de que a Máquina é útil, desejável, deve ser abusada para fins que auxiliem a sociedade, mas não deve ser cobiçada. No momento em que ganha vida própria, é preciso saber que se pode destruí-la. Se “V de Vingança” associa o humano à Máquina e acredita que só é possível subjugar o sistema aniquilando as autoridades, “SLpD” acredita na deposição da Máquina sem que isso custe uma vida sequer.
A cena acima continua: apesar de tudo, a Máquina é o meio, quase destruído, para salvar a vida do irmãozinho que nasce, levando a família inteira para o hospital. A única marcha que ainda funciona é a ré. E o único que pode dirigir o carro nessas condições, e salvar uma vida, é o contestador perseguido e condenado ao longo de todo o filme. A hilária seqüência em que Les dirige de marcha ré pelas ruas é de uma subversividade inimaginável por McTeigue, Joel Silver e os irmãos Wachowski de “V”. Antes da destruição completa, Les usa a máquina (carro) contra a Máquina (leis de trânsito) a favor da Máquina (salvar uma vida). Porque, para que se possa viver, às vezes é preciso ir na direção contrária à das massas, ainda que a subversão nos torne identificáveis.
fonte: http://www.pilulapop.com.br/overdose_secoes.php?id=624
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